domingo, 29 de janeiro de 2023

Contém spoiler sobre o espetáculo tReta – Festival Panorama 30 anos

 Essa crítica é puramente especulativa, quem sabe no desejo de mencionar o espetáculo desde um viés que é político e afetivo. Tento misturar estes dois porque se é para falar de experiência vivida descolonizando é para que seja intensa. Certo, se é para ser o humano vai ser naquele conflito mesmo entre o bonito do amor e a treta do conflito. Quando a gente tem medo ou tá acuado, a gente ataca ou some. A gente nem por isso precisa ser o tempo todo maniqueísta tipo futebol ou um ou outro. Por isso, esse texto é um elogio e uma cantada coletiva.

A primeira impressão foi de uma imersão no universo caótico do colonizado brasileiro. Aquele que vive da cultura do medo e da violência. Se é para dar uma primeira referência, tReta representa os condenados da terra do Fanon. Na correria do corre da moto da bicicleta do a pé, na correria do medo. Do asfalto. Do falar sozinha. Da correria do medo de morrer, de fracassar ou de enlouquecer – como diria uma referência Suely Rolnik, mas esquecemos das referências.

tReta é conflito tendo uma linguagem extremamente sofisticada com cenografia completamente popular na gambiarra. Como Adirley Queiroz, que faz filmes tecnicamente impecáveis e uma relação conectada com o discurso politico e em defesa do povo. Tendo um futurismo, no desenho de som e na iluminação, tipo gambiarra, mas potente, esteticamente falando.

Pois sim, fazer uma imersão que coloca pessoas em um cenário de angustia, a principio que vai subindo pelas dores físicas que o corpo cai nos artistas – que já volto a mencionar – estas dores que não se alcançam com tempo e a distância da classe social, se alcançam por alguns minutos. Num clima distópico, se simula os pivetes passando na rua, de skate, ou de moto, tReta também simula a dificuldade do olhar aquele menino que você sabe que potencialmente pode te assaltar. Eu que sou mulher e finjo ser rica, achei estrategicamente potente colocar isso em cena, enfrentar isso em cena, talvez uma terapia de choque. Ou foi minha impressão.

Em seguida, tem a questão do masculinidade viril. Os corpos que fazem um trelêlê – com coreografia, viadagem, suingue, e ao mesmo tempo esforço de se perder numa catarsis – confronta o machoastral de maneira cômica, mas também viril. Ou seja, representa um modelo de macho, que é positivo sensual. Finalmente. Eu tenho 33 anos quase 34 e é um debate a ser feito. Quais modelos de homens vamos educar para serem positivos sensuais? Que tenha tesão sabendo que tesão também é afeto (valeu Marçal!) ?

            Porque tReta mostra esses riscos, riscos de enfrentamento, de desabamento, riscos de se exibir, de se mostrar, de falar o que pensa, o próprio espetáculo passa pelo afeto para representar uma vida outra, além da violência, além do conflito.

Na experiência mesma, no quase toque, na quase fronteira eles mostram a si mesmos vivendo como artistas para mostrar que é possível homens serem tanto homens – viris – e sentirem dor e serem o que não é normal : pichador, dançarino de hip hop, artista contemporâneo e periférico.

Por sinal voltando a falar sobre dor, um elemento da masculinidade nordestina (posso afirmar pelo menos nordestina) é que macho que é macho não sente dor, que consegue tomar tiro e afins... Jornal espreme sai e sangue. E ai que tReta que bem ou mal simboliza (não sei se simbolizar é a palavra certa, mas digamos incarna) um esforço físico para virar macho, o tal do devir homi, mostra que não somente pode existir enquanto “homi”, como inclusive pode dançando, se tocando, botando ao máximo um expurgo-cura deste pesadelo de vida. Não tenho outras palavras, tudo que escrevo é uma especulação gostosa de pensar que vi um bom espetáculo, que retrata a realidade de maneira a representa-la assim nua e crua me parece ser o lugar de descarrego dos afetos. Aqui não sentirei mais medo. Aqui sentirei amor.

            “Sim gente dá tesão, eles são gatíssimos, todos!, mas não é só sobre isso. Eu realmente fiquei com tesão no espetáculo” eu falando em mesa de bar sobre a peça... Por ventura esse desejo de escrever faça que eu separe a brincadeira do brincar, é porque também quero dedicar ou pelo menos representar beleza, paixão, sentimentos que fazem valer ... Nossa juventude precisa da gente vivo/viva, mostrando que se vive, e vivendo permitir/transmitir/passar os saberes, para que eles vivam também. Mesmo que saibamos a guerra civil nas trincheiras bem próximas de alguns e mais longínquas para outros, o momento do espetáculo é o pequeno fôlego de respiro e reflexão. Fazia tempo que eu não ia assim e chocada, e sensível, e sim, eu sou emocionada.

            Talvez em um outro momento eu escreva sobre a liberdade de sentir paixão que não seja só do homem, sobretudo aquele da dominação, mas de sentir paixão e afeto à outros lugares, como o tReta, como as amigas e a vida ela mesma. Diferente de um boy lixo, tReta mostra essa masculinidade que esta por vir.

O bagulho é doido, e o lance intenso.

O final tem uma pajelança, como um modelo de homem indígena, aquele que sabe se curar com o que tem.

Quantas vezes a colonização tentou apagar essa memória das pessoas mestiças?

A mestiçagem forçada ou não que apaga esses saberes e aí vem o tReta que retoma num grand finale. Aí o afeto deixa de ser individual e vira coletivo. Pelo som das bombas de grafitti, simulando os chocalhos indígenas eles fazem o clímax descolonial, lembrando também desde o início de quem eles são.