Abertura da Vênus


Aula pública em Petrópolis 02/04/16
Vênus no evento Monstruosas (Recife, 2015)
A


Abertura da Vênus

“E ela, naquele afã, mudando modo e direção do nado, virava-se na água, observava-se em todas as luzes, contorcia-se sobre si mesma; e sempre aquele ofensivo corpo nu lhe vinha atrás. Era uma fuga do seu corpo o que ela estava tentando...”.
[“Aventura de uma banhista”, Ítalo Calvino]¹



   A questão do amor é o leitmotiv desta investigação. Porque deseja ser um trabalho erótico, deseja um saber sobre Eros.  Abertura da Vênus é um projeto sobre os desdobramentos conceituais e pictóricos que influenciam a moral acerca da imagem feminina. Desde seu mito grego com a Deusa Afrodite contada por Hesíodo[1], sua conceituação filosófica, a influencia renascentista e, por fim, quais são as nossas Afrodites contemporâneas, a exemplo, o filme Doce Amianto (Ceará - 2013). Este trabalho também conta com performances durante sua apresentação, para que se atualize e visualize contemporaneamente a questão do corpo.
    Nessa esteira de imagens e conceitos – cosmogonia hesiódica, pensamento platônico acerca do Eros e Afrodite presentes no discurso de Pausanias no Banquete – nós faremos o estudo do esquema teórico acerca do Eros. Sua influencia, na Antiguidade, na Renascença e até hoje.
    A partir da influencia cristã, no Renascimento, com Marsilio Ficino e Pico de la Mirandola, outra conceituação emerge acerca da representação do mito do nascimento da Vênus e da imagem da beleza intelectual salvaguardada de despudor, como também na criação de categorias formais para a representação artística do nu.
    Usaremos, como chave de interpretação do mito de Afrodite, no Renascimento, centrado na Vênus de Botticelli, o livro “Ouvrir Vénus” de Georges Didi-Huberman. Huberman propõe um estudo acerca da imagem do nu feminino e suas representações acerca do amor com foco no quadro de Botticelli. Através de um “disegno ou desenho renascentista, visualiza o nu feminino e sua associação e/ou dialética com a figura/forma de amor.
       Qual é o quadro histórico-conceitual do amor anadiômeno? A partir das analises de Huberman, quais são as Afrodites Anadiômenas contemporâneas?        
    Durante a apresentação do trabalho desenvolvo performances de envolvimento afetivo com o mar (elemento da natureza), o protesto pelo nu (elemento político) e o banho (elemento humano e ritualístico).
HESÍODO E O MITO DO NASCIMENTO DA AFRODITE
   Desde a Época Arcaica na Antiguidade grega e o surgimento dos poetas, da construção de cosmogonias, o belo é retratado segundo alguns símbolos que re-significam o próprio modo-de-ser do belo. Os nomes vão carregar em si mesmos um Esquema[2]) conceitual para que na prática grega se possa aliar o pensamento e a ação, como modelos de feitura de estátuas, homenageando deuses e deusas, Figuras de dança, que denotam movimento e coreografia, Inclusive danças estratégicas de guerra. Há esquemas para a decoração de casa, feituras de estátuas, gestos, danças, comportamentos, que podem denotar nobreza ou horror (Casevitz, 2006).
 
    Na Teogonia se travará um diálogo da formação do cosmos, entre deuses e homens. Hesíodo assim descreve o início do universo :
Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também
Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,
dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado,
e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,
e Eros: o mais belo entre Deuses imortais,
solta-membros, dos Deuses todos e dos homens todos
ele doma no peito o espírito e a prudente vontade.
Do Caos Érebos e Noite negra nasceram.
Da Noite aliás Éter e Dia nasceram,
gerou-os fecundada unida a Érebos em amor.
Terra primeiro pariu igual a si mesma
Céu constelado, para cercá-la toda ao redor
e ser aos Deuses venturosos sede irresvalável sempre.
Pariu altas Montanhas, belos abrigos das Deusas
ninfas que moram nas montanhas frondosas.
E pariu a infecunda planície impetuosa de ondas
o Mar, sem o desejoso amor. Depois pariu
do coito com Céu: Oceano de fundos remoinhos
e Coios e Crios e Hipérion e Jápeto
e Teia e Réia e Têmis e Memória
e Febe de áurea coroa e Tétis amorosa.
E após com ótimas armas Crono de curvo pensar,
filho o mais terrível: detestou o florescente pai.
(...)

e o mito do nascimento da Afrodite:
O pênis, tão logo cortando-o com o aço
atirou do continente no undoso mar,
aí muito boiou na planície, ao redor branca
espuma da imortal carne ejaculava-se, dela
uma virgem criou-se. Primeiro Citera divina
atingiu, depois foi à circunfluída Chipre
e saiu veneranda bela Deusa, ao redor relva
crescia sob esbeltos pés. A ela. Afrodite
Deusa nascida de espuma e bem-coroada Citeréia
apelidam homens e Deuses, porque da espuma
criou-se e Citeréia porque tocou Citera,
Cípria porque nasceu na undosa Chipre,
e Amor-do-pênis porque saiu do pênis à luz.
Eros acompanhou-a, Desejo seguiu-a belo,
tão logo nasceu e foi para a grei dos Deuses.”

  Segundo Hesíodo, nos versos 170 a 205, Urano (Céu) demonstra ser a imagem déspota e violenta impedindo que Gaia (Terra) dê a luz aos seus filhos, cansada de ser violentada, trama junto com seu filho mais novo a derrota de Urano. Constrói uma foice, com dentes afiados, para, numa emboscada, Cronos (Tempo) com sua coragem castrar o próprio pai. Das gotas de sangue celeste que respingam na terra escura surgem três potencias divinas: as Erínias se responsabilizam pela vingança, fazem a justiça contra crimes cometidos por parentes, por exemplo, auxiliam Zeus a vingar o avô. Os gigantes e as ninfas de freixos responsáveis pelas empreitadas na guerra são os representantes das lutas, das provas de força e as investidas guerreiras. Cronos ao castrar Urano libera ao mundo o que era antes um estado de “servidão”.

      Junto com o seu nascimento, seus nomes e elogios demonstram a dimensão de sua graça e beleza, como atesta Commelin:

Elle avait une ceinture où étaient renfermées les grâces, les attraits, le sourire engageant, le doux parler, le soupir plus persuasif, le silence expressif et l'eloquence des yeux.[3]

          A violência implicada no seu nascimento é uma característica que torna Afrodite carregada de duplo, entre a paz e a guerra, o amor e o ódio. Em outras referências, como no canto VIII do Demódoco, Afrodite aparece como uma amante infiel ao conhecimento de todos do Olímpio, demonstrando que as armas que Afrodite usa estão relacionadas a atributos femininos como a sensualidade, a brincadeira e o riso.
        
    Em cortejo ao nascimento, Eros (Amor) e Himéros (Desejo) acompanham e se juntam, agora em função dos desígnios da deusa. O mar é o aspecto da natureza que dá, na personalidade divina, imprevisibilidade e malemolência. Os nomes de Afrodite também terão importância, tais como Ciprogênese, por nascer na ilha de Chipre, Philomedeia que em português significa amiga do pênis.
   Ao estudar o mito descrito por Hesíodo, percebemos a presença de elementos da natureza na geração de deuses cujos domínios concernem a aspectos relativos as paixões e ao modo de agir dos homens. Comportamento dado de acordo com a imagem divina. De outra maneira podemos mostrar ao interpretar os nomes atribuídos a Afrodite, através dos mesmos se formará uma imagem conceitual, composição de afetos, de enredos poéticos e de atitudes divinas.
    A Teogonia é um texto importante porque dele surgirão interpretações, discussões e base de pensamento para o tema estudado nesse trabalho, o mito do nascimento de Afrodite.

AS DUAS AFRODITES DE PLATÃO

      O Banquete é o diálogo platônico direcionado as questões do amor. Conta sobre o encontro organizado por Agatão, para que os convidados, cada um a sua maneira, discorram sobre o que é o amor. Segundo Lucas Soares, Platão constrói no Banquete diálogos que desconstroem e antecipam as problemáticas. Conforme definição do “gênero discursivo”, cujo significado implica um pensamento que mostra um modelo coerente do mundo. O modelo platônico apresenta uma forma polifônica de fazer filosofia. São diversas vozes, de uma maneira poética como também incluindo a dialética filosófica. Para mostrar a questão do Eros, que é o próprio combustível da filosofia, não só como sensualmente, mas num âmbito da polis, da justiça. Porque só se poderia falar de amor, com um gênero discursivo polifônico.      
        O texto, em cada elogio, desconstrói e instiga ao próximo uma aporia. A desconstrução também se dá no fato do discurso ser um discurso indireto, contado por uma terceira voz. Em diversas passagens Aristodemo comenta que a história é mais ou menos contada, de acordo com o que ele se lembra. Como aponta Lucas Soares, Platão pega elementos de outros discursos, resignificando. Essas intermediações fazem a imagem da imagem, não sendo fidedigna, para respeitar inclusive a ideia da duvida. Demonstra um distanciamento filosófico, podemos localizar na passagem 178a onde, passando por uma edição, lembrando o que importa lembrar. Por outro lado, mantém a importância da aporia, como também da presença de diferentes perspectivas.
      O Banquete é caleidoscópio, sete espelhos discursivos em torno do que se considera o amor. Sobre isso, Lucas Soares comenta:


“Este hecho que suele pararse de largo no es um dato menor dentro de la arquitectura conceptual de la obra. De principio a fin Pláton hace interactuar em Banquete al conjunto de lós gêneros discursivos (retórico, cientifico, cômico, trágico y filosófico) más reputados de su época em función de uma reflexión sobre el amor”[4].

      Afinal, os personagens seguem um agón, ou seja, uma competição. Onde cada um vai defender um ponto de vista.  Há uma relação do pensamento com o vinho porque Dioniso é o juiz desta competição. A paresia é exigida.
      No discurso do Pausanias se apresentam duas gêneses da Afrodite, consequentemente, a existência de dois tipos de amores: Afrodite Urania nascida da castração do Céu (contada por Hesíodo) e Afrodite Pandêmia nascida de Dione e Zeus.
     Instigados por essa natureza caótica do divino nos cometemos os erros da paixão, atos humanos indignos levados pelo impulso de saciar os desejos. Pausanias, contudo, lembra que a moralidade divina e sua intervenção nos auxiliam a não “cair na tentação”. Correspondente aos deuses existe um rol de funções e interesses.  
          Afrodite Urânia é responsável pela inteligência, essencialmente masculina, dotada dos belos discursos, isenta de violência, para amar por toda a vida.
         Afrodite Pandêmia, é mais nova, tem como responsabilidade o amor vulgar ou com outra palavra, popular. Aquele que é pandêmio, logo se entrega e visa efetuar o ato, como uma fome que não se sacia. Acerca do amor pandêmico Pausanias atribui uma instabilidade do corpo, movido por interesses de satisfação rápida e instantânea. O amor digno é estável. Sendo Afrodite mais velha, nascida sem mãe, Urânia é considerada a mais bela e justa.
       Jean Rudhart esclarece que a construção da imagem da Afrodite Urânia ser estritamente “celeste”, intelectual, desencarnada, é uma construção moral dada no discurso do Pausânias no Banquete, inclusive tendo o uso moral no cristianismo. Assim ele comenta: “A prática cultural nos mostra de outra parte que Afrodite Urânia não é somente a deusa dos amores desencarnados, as prostitutas lhe renderão homenagens e solicitarão sua proteção.” [5].
         Desta maneira, demonstra que o pensamento platônico também amplia o discurso ao âmbito da moral.
     Platão também diferencia os tipos de amor, para falar de um tipo bem específico: do Eros filosófico. Afrodite Urânia é o desejo de saber, é um elogio ao intelecto, ao discurso e a ideia. O senso erótico da filosofia não é senão um modo de vida, que permite dizer de diferentes maneiras, mas que mantem a postura e a dedicação para o pensamento e o desejo de saber. A práxis platônica apresentada é que a pergunta “por que filosofar?” equivale a pergunta “por que amar?”.
     É nesse cenário conceitual que forma a imagem em torno da deusa Afrodite. Jean Rudhart (1986, p. 20) mais uma vez assinala que Platão na sua descrição das Afrodites tem como função uma lição moral:
“Il est vrai que Platon distingue déjà deux Aphrodites mais il ne fait pas pour résoudre un problème que la pluralité des traditions poserait à ses yeux. Il veut donner une leçon de morale”[6].

VÊNUS CELESTE E VÊNUS VULGARIS
    No Renascimento a influencia neoplatônica traz de novo os debates sobre o que é o amor. Não só na literatura, como afirma Panofsky, mas também as imagens botticellianas tomam como referência a teoria neoplatônica do amor. No seu livro Ensaios de iconologia[7], o autor coloca que tal descrição é feita pelo filósofo neo-platônico Marsilio Ficino. Junto com Pico de la Mirandolla, Seu “Livro do Amor” re-interpreta e re-significa o mito do nascimento da Afrodite, acrescentado ao contexto cristão. Ele condena a relação pederasta proposta por Pausanias, mas considera justa sua preocupação com as paixões e com os impulsos. Realiza a idealização do belo, restrita ao intelecto, considerando apenas o aspecto “celeste”, ou seja, distante do corpo.
       A Vênus de Ficino parte de uma esfera totalmente imaterial, simboliza o esplendor primeiro e universal divino, como também sua bondade e beleza. A Vênus celeste fica entre a inteligência humana e Deus. A Vênus Vulgaris representa a beleza divina encarnada no mundo físico. É a deusa do amor vulgar. Segundo Ficino, o amor era dividido em três: o amor divino, que corresponde ao intelecto, o amor humano, que corresponde a todas as outras faculdades da alma e, por fim, o amor bestial (sexo tal como o animal) que corresponde a uma espécie de loucura.
     Por se tratar da representação de um Deus, sendo a máxima instância, distante do animal, da matéria que é finita, o divino é ligado ao ideal de beleza e amor, o nu fica estacionado no que se considera imortal, o desenho (disegno), ignorando o aspecto carnal, como também negando que exista desejo (Himéros). A beleza divina gera o amor, a forma (schèma) deve tratar de conceitos intelectuais, que levem a uma transcendência do belo, bom e verdadeiro.
     O obscuro lado do desejo é temido por sua crueldade, violência e capacidade de engano. Segundo Kenneth Clark[8], o nu tem um fim em si mesmo, protegido da finitude, do corpo que se decompõe. Já que a imagem divina é a representação do que se considera perfeito e, portanto, inacessível ao homem, imagem não pode estar ligada ao que justamente torna o homem submisso: sua animalidade desconhecida e mortal, o pecado original como comprovação desta separação. O castigo de Adão e Eva, ao cometerem o pecado original, é enxergar a própria animalidade, a singular nudez.
     O modelo filosófico da nudez, portanto, segundo a posição proposta por alguns comentadores (como, por exemplo, Kenneth Clark e Panofsky) da iconologia clássica, é que a nudez faz parte de uma busca por um ideal divino de amor. Trata-se da nudez dessexualizada, de uma representação teórica e metafórica. O nu, portanto, quando utilizado na Renascença deveria descrever a imagem divina (intelectual) restringindo o nu ao disegno (desenho). Ou como Viviane Matesco o chama: o nu metafísico[9].
     A partir do momento em que há o isolamento da nudez, percebe-se que tal isolamento é feito para evitar o “desejo de tocar, parte da tensão que atinge o espectador. Portanto, um dos aspectos do isolamento da nudez é evitar a tensão do tocar e do desejar. Uma elaboração secundária, consequente deste primeiro aspecto, é que se cria uma instrumentalização moral tornando o corpo (e o nu) símbolo de horror, temor e crueldade.
    Huberman não só atesta o distanciamento das categorias de desenho com a fenomenologia da nudez como também traz o pensamento psicanalítico para interpretar o movimento inconsciente dos autores e artistas na representação do nu e do feminino. O conceito psicanalítico utilizado é o proposto por Freud, que se chama Isolação (Isolierung). Isola-se aquilo que o considera impuro como inexistente e o coloca em outros campos de consciência não perceptíveis, firmando uma moral subjetiva e uma estética com base em categorias do pensamento que não condizem com esses campos de percepção isolados.
   A nudez tal como um processo de abertura do nosso mundo, visto que um dos símbolos da diferença entre homens e animais é a vestimenta. O exemplo pictórico é A Origem do Mundo (1866) de Gustave Courbet.
   E, logo, que nos desnudamos, desvelamos também nossa animalidade, sobretudo no ato sexual. Georges Bataille, no seu livro intitulado “O erotismo”[10], estuda as origens, os fatores psíquicos e filosóficos do comportamento em relação a nudez e ao erotismo. Relaciona, inclusive, os sacrifícios aos deuses, no mundo antigo, como uma relação morte-nudez, pois todos os sacrificados ficavam nus. Reafirmando a tese de que a construção teórica do quadro da Vênus teve – intencionalmente ou inconsciente – como intuito a construção de uma ficção moralizante.
      Bataille afirma que a consciência da reprodução sexual e da morte foi o fator determinante para a criação das interdições, a partir das quais a sociedade historicamente é construída através de determinadas moralidades e condutas. O autor revela que o nu transgrediu as moralidades por ser justamente no ato de estar nu o momento erótico, no qual o homem encontra-se com o animal consciente de si e da sua finitude. A interdição não deixa de existir, ela coexiste junto com a transgressão. Há na nudez um sentido próprio do obsceno, onde a nudez e o obsceno revelam um envolvimento que aparece no erotismo. Porém, como, Bataille afirma: “A nudez não é sempre obscena e ainda pode aparecer sem lembrar-se da inconveniência do ato sexual” [11].
     O questionamento que Bataille, no seu livro, propõe é a investigação do erotismo como movimento do homem em direção a uma ontologia da nudez. Pensando o erotismo, o nu e o que nos instiga a sentir o desejo não mais reprimido, não mais categorizado em esquemas racionais, ele relaciona a violência, por crer, que é nela que se perde a racionalidade.
“O êxtase cerebral é aprovado por um homem beijando o objeto fresco da nudez, dentro do espaço vazio, dentro da profundidade aberta do universo, o estrangeiro da minha meditação atenta do mesmo objeto que me delira” [12].

   Encarar a nudez imagética como processo de nossa própria cosmogonia ou ontologia. Se para os gregos as obras eram oferecidas aos deuses, para depois no Renascimento oferecer-se ao deus cristão sua máxima instância de inteligência e superioridade racional, agora oferecemos a nós mesmos, pensando um cotidiano liberto de instâncias hierárquicas e morais. Oferecemos a arte e a nós mesmos.
   O filme Doce Amianto (2013) liberta os feios, os grosseiros traços do corpo, as doenças, aos que são diferentes a uma possibilidade de amor e encontro. É trajetória de nossa Vênus cotidiana, cheia de esperteza e dúvida de sua própria fé. Aqui Vênus é Amianto. Tal como a Vênus de Botticelli que tem seu zéfiro, ou a Afrodite de Hesíodo que tem seu séquito (Eros e Himeros), Amianto tem sua fada madrinha que a acompanha. Sua historia não é dissociada de morte. O amor se encontra nessa caoticidade de eventos, de geração de beleza e dor. Ao passo que continuamente o espelho conceitual se dá também na política. Amianto depois de gozar seu encontro pleno e real com o amante-amado, se dedica e se entrega ao gozo do mundo, a esse desejo de libertar o outro ao amor, ao belo, ou seja, o desejo de fazer arte, de transcender, de visualizar e representar e mais, de acreditar no mito, na ficção cultural como sentido de nossas vidas.
    Doce Amianto é um grito de resistência. É político e heroico. É pornô e singelo. No mais, a imagem de Afrodite contemporânea, como aquela que acompanha uma tradição de amor e beleza e se atualiza nas questões de gênero, liberdade política e estética.

Notas
(1) CALVINO, Ítalo. Os amores difíceis. São Paulo: Companhia das Letras,
1992.
(2) Sobre Georges Didi-Huberman: nascido em Saint-Étienne em 1953,
é filósofo, historiador, crítico de arte e professor da École de Hautes Études
em Sciences Sociales, em Paris.
(3) NIETZSCHE, Friedrich. Considerações Inatuais, II: Da utilidade e
do dano da história para a vida. Rio de Janeiro: PUC/Rio, Loyola:2005: p.
97 e 165-166.
(4) CASEVITZ, Michel. Schèma/Figura. Formes et figures ches les anciens.
Editions rue d’ulm. Tradução livre. p.18.
(5) SOARES, Lucas. “La erótica platónica en perspectiva. Notas para
una lectura del Banquete (Estudio preliminar)”, em PLATÃO, Banquete,
trad. de Claudia Mársico. Buenos Aires, Miluno, 2009, p. 34
(6) HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Trad. J.A.A. Torrano.
São Paulo: Iluminuras, 1991.
(8) FICINO, Marsilio. O livro do Amor, trad. A. T. Basilio Vieira. Rio de Janeiro: Centro de Investigaçao Filosofica, Clube de Literatura Cromos,
1996.
(9) PLATÃO. O Banquete. Lisboa: Edições 70. 1991. Trecho 183e.
(15) BATAILLE, Georges. O Erotismo. Trad. João Bénard da Costa.
Lisboa:Antígona, 1988
(17) BATAILLE, Georges. Le Coupable. Paris: Gallimard, 1944. P. 255
Tradução livre do trecho : “un corps nu, exhibé, peut etre nu avec indifference.
De meme il est facile de regarder le ciel au dessus de soi comme un
vide. Un corps exhibé, toutefois, possede a mês yeux le meme pouvoir que
dans le jeu sexuel, et jê puis ouvrir dans l’etendue claire ou sombre du ciel la
blessure a laquelle j’adhere comme a la nudite feminine. L’extase cerebrale
eprouvee par un homme embrassant a pour objet la fraicheur de la nudite,
dans l’espace vide, dans la profondeur ouverte de l’univers, l’etrangete de
ma meditation atteint de meme um objet qui me delivre”.






[1] Hesíodo. Teogonia.
[2] Sobre esquema: Heuzé, Philippe. Schèma/Figura. Formes et figures ches les anciens. Editions rue d’ulm.
[3] P. Commelin. Mythologie grecque et romaine. Editions garnierfréres. p.70 tradução livre : « Ela tinha um cinturão no qual estavam contidas as graças, as atrações, o sorriso, a conversa doce, o suspiro mais persuasivo, o silêncio e a eloquência expressiva dos olhos«
[4] Platão. O Banquete, com estudo preliminar de Lucas Soares. Miluno Editorial, 2009. Buenos Aires. p.14 Tradução livre: “Este fato que geralmente não fica muito tempo não é um dado menor da arquitetura conceitual da obra. Do início ao fim Platão faz interagir o banquete a todos os gêneros do discurso (retórica, científica, cômico, trágico e filosófico) mais renomados de seu tempo em função de uma reflexão sobre o amor”

[5] Rudhart, Jean. Le rôle d’Eros et d’Aphrodite dans les cosmogonies grecques. 1986. Paris. P. 20

[6] Rudhart, Jean. Le rôle d’Eros et d’Aphrodite dans les cosmogonies grecques. 1986. Paris. P. 20 Tradução livre: "É verdade que Platão distingue já duas Afrodites, mas não para resolver um problema que a pluralidade das tradições faria em seus olhos. Ele quer dar uma lição de moral”.
[7] PANOFSKY, Erwin. Essais d’iconologie. Paris: Éditions Gallimard,1967.
[8] CLARK, Kenneth. Le Nu. Paris: Le Livre de Poche, 1969.
[9] MATESCO, Viviane. Corpo, Imagem e Representação. Rio de Janeiro:
Zahar, 2010.

[10] BATAILLE, Georges. O Erotismo. Trad. João Bénard da Costa.
Lisboa:Antígona, 1988
[11] BATAILLE, Georges. Oeuvres Complètes VIII. Paris: Gallimard, 1976. P. 133.
[12] BATAILLE, Georges. Le Coupable. Paris: Gallimard, 1944. P. 255
Tradução livre do trecho : “un corps nu, exhibé, peut etre nu avec indifference.
De meme il est facile de regarder le ciel au dessus de soi comme un
vide. Un corps exhibé, toutefois, possede a mês yeux le meme pouvoir que
dans le jeu sexuel, et jê puis ouvrir dans l’etendue claire ou sombre du ciel la
blessure a laquelle j’adhere comme a la nudite feminine. L’extase cerebrale
eprouvee par un homme embrassant a pour objet la fraicheur de la nudite,
dans l’espace vide, dans la profondeur ouverte de l’univers, l’etrangete de
ma meditation atteint de meme um objet qui me delivre”.



Nenhum comentário: