Afrodite Nise
“E ela, naquele afã, mudando modo e direção
do nado, virava-se na água, observava-
-se em todas as luzes, contorcia-se sobre si
mesma; e sempre aquele ofensivo corpo nu
lhe vinha atrás. Era uma fuga do seu corpo
o que ela estava tentando...”.
[“Aventura
de uma banhista”, Ítalo Calvino]
Roteiro
para apresentação Abertura da Vênus no Hospital Nise da Silveira.
Acima de
tudo a primeira pergunta a que nos fazemos : o que é o amor? Como associamos a
animalidade, a consciência e a humanidade (de se por aos afetos, aos erros e
desatinos) do amor. A proposta é ensaiar
o mundo cosmogônico do amor, visto por olhos grego-ocidentais, sua aplicação
moral no cotidiano e o nosso salto que permite novas criações amorosas.
E confundir os conceitos, é trazer a tona sua
duplicidade de sentidos, além de testar os papeis profissionais a que eu
estudo: professora, pensadora e performer. Não só com as pessoas que se dispõem
a ir ao Sarau, mas também avaliar meu papel de mediadora de forças e energias
com os pacientes. Avaliar as sensibilidades, inteligências e potencias que
singularmente as pessoas tem dentro delas mesmas, não importando sua “cultura”,
ou “educação” ou mesmo “normalidade”.
Durante a contação de histórias, disponho de alguns
elementos sensoriais, a escuta do mar, o tato com as conchas e o cheiro de
óleos e perfumes. O objetivo é criar um mar, uma outra natureza para além do
hospital, encarcerado de imagens e paisagens, uma outra natureza livre.
O nosso mito é o nascimento da Afrodite. A
deusa do Amor na cultura antiga grega. Influenciou a representação estética
feminina no cristianismo, no Renascimento e até hoje mostra reflexos no
cotidiano de sua ficção moralizante.
O ensaio começa com o poema Teogonia, de
Hesíodo:
“
Sim
bem primeiro nasceu Caos, depois também
Terra
de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,
dos
imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado,
e
Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,
e
Eros: o mais belo entre Deuses imortais,
solta-membros,
dos Deuses todos e dos homens todos
ele
doma no peito o espírito e a prudente vontade.
Do
Caos Érebos e Noite negra nasceram.
Da
Noite aliás Éter e Dia nasceram,
gerou-os
fecundada unida a Érebos em amor.
Terra
primeiro pariu igual a si mesma
Céu
constelado, para cercá-la toda ao redor
e
ser aos Deuses venturosos sede irresvalável sempre.
Pariu
altas Montanhas, belos abrigos das Deusas
ninfas
que moram nas montanhas frondosas.
E
pariu a infecunda planície impetuosa de ondas
o
Mar, sem o desejoso amor. Depois pariu
do
coito com Céu: Oceano de fundos remoinhos
e
Coios e Crios e Hipérion e Jápeto
e
Teia e Réia e Têmis e Memória
e
Febe de áurea coroa e Tétis amorosa.
E
após com ótimas armas Crono de curvo pensar,
filho
o mais terrível: detestou o florescente pai”
Toca Anakrousis (musica grega antiga). Balanço um
pouco a bacia. Olho por entre os sujeitos. Espero o silencio que for, o
silencio necessário. Conto a história de um simpósio – explico que simpósio é
uma espécie de competição de argumentos, onde o deus do vinho é o juiz e a
todos é dada uma dose de vinho – e o simpósio que vou contar é sobre o amor.
Cada convidado dá sua própria perspectiva sobre o amor.
Conto rapidamente sobre o romance entre Alcebíades e
Sócrates.
Relembro o poema de Hesíodo e o porquê de estar
falando deste simpósio: um dos convidados fala sobre Afrodite. Aqui é dupla. É
Urânia (a que é contada por Hesíodo) responsável pelo amor intelectual: o saber
erótico, ou melhor, a pedagogia pederasta, onde o mestre ancião passa o saber
teórico e prático do amor para um jovem. A outra Afrodite é Pandêmia – que em
grego significa popular – filha de Dione e Zeus, protege os amantes e ama a
todos, refere-se especificamente para o sexo. É evidente que Platão diferencia
e moraliza essa perspectiva amorosa.
O que no cristianismo ocorre plenamente. (Mostrar a
imagem do Botticelli). O corpo, sua animalidade, expressão de imprevisível
afeto é negado, colocado a um lugar chamado loucura. Aqui podemos tomar como
exemplo a tabela que o Panofsky coloca no seu livro ensaios de iconologia, onde
assemelha o ato sexual ao da loucura.
Huberman (autor de Ouvrir Venus) nos traz o conceito
de Isolação, proposto por Freud. Isola-se para esconder o que nos trás a
animalidade, a finitude, a morte, o caos. Escondendo para reafirmar através de
uma tradição de conceitos o que se considera como belo e bom. (Mostrar o
conceito de isolamento).
Por fim, quais seriam as nossas Afrodites
contemporâneas? (Mostrar Doce Amianto). Desta vez, não mais separando as
Afrodites, mas juntando-as no que hoje se chama de trans.
Depois da fala, faço um banho terminando a playlist. Um
banho para trazer mais amores, mais liberdades, mais fé no caos afetivo, nas
partículas de fuga, nos errores e afetos.
Nise da Silveira
(Uma homenagem, um singelo cheiro, um site-especific, um ateliê) [1].Pesquiza Amoral
Estrategicamente
esta pesquisa amoral será a mais realista possível. As perguntas buscarão criar
um mapa que descreva a imagem mais precisa e detalhada sobre o Hospital Nise da
Silveira. Desta vez é o real que vai nos presentear com suas imagens fantásticas,
estrangeiras ao senso comum, ao que se é considerado “normal”. Por outro lado,
o tom político desta pesquiza é apreensão
(entendido aqui no sentido de preocupar, também de perceber e descobrir) como o
hospital é gerido, tratado, como os enfermeiros trabalham se há condições, no
final, com a pergunta constante: o que é liberdade? Há esperança? Há luta? Como
resistir?
Questões
1)
Você é um cliente[2]?
(O que você acha desse nome?).
Caso sim:
1.1) Por que você está aqui? Como você avalia o
tratamento do hospital? Quais seriam as principais reclamações? E o que você
mais gosta daqui?
Caso não (se for
trabalhador a pergunta se direciona para as condições de salário e
infraestrutura):
1.2) Por que você está aqui? Como você avalia o
tratamento do hospital? Quais seriam as principais reclamações? E o que você
mais gosta daqui?
2)
Como é a sua rotina? Como é o seu real?
(o seu tempo é bem administrado?).
3)
E o amor / mar? Sobre os elementos da
natureza: o sentimento e a paisagem, que compõem esse estado de graça, que
alguns encaixotam como prazer, desejo,
ou melhor: viver...
Qual é o seu desejo?
Pergunta
extra: De 0 a 10 o quanto curtiu a Pesquiza Amoral?
[1]
Palavras-chave que definem não só a continuação da luta antimanicomial gerado
pela Nise, um relato de carinho e de primeiras palavras, já que este relato
comenta o primeiro trabalho a ser apresentado.
[2] Por se tratar do
Hotel da Loucura, alguns pacientes são chamados de clientes. A pergunta segue
ampla e (ao vivo comentarei) sobre a sociedade de consumo e se afinal não somos
todos clientes (ou melhor escravos)
de um sistema.
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